Toni Venturi e o sonho de uma cinematografia soberana

Data

Por Alfredo Manevy – Cineasta e Associado APACI 

Especial para O Globo

Se os filmes são acontecimentos centrais de uma cinematografia, há outra dimensão menos visível que é a construção política, feita de pontes e diálogos, e da articulação de instituições que tornam possível o apoio ao cinema. Em um país periférico mas culturalmente significativo como o Brasil, esse sonho teve ciclos: Cinédia, Atlântida, Embrafilme, Vera Cruz. Públicas ou privadas, as iniciativas de estabelecer um projeto estável para o cinema nacional foram não raro interrompidas por crises econômicas e políticas, vindas de fora ou de dentro do próprio audiovisual.

Toni Venturi formou-se em cinema no Canadá nos anos 80, no crepúsculo da Embrafilme. Fez parte de uma geração que precisou inventar um modo de fazer cinema no hiato entre duas eras: a diversa e rica produção de filmes dos anos 1970, e o deserto cultural da era Collor. Até que veio o nascimento da Ancine, nos anos 2000, e com os governos Lula I e II o impulso para um novo ciclo potente para o audiovisual – que Toni ajudou a construir.

​Testemunhei de perto a generosidade e dedicação de Toni Venturi às causas estruturais do cinema brasileiro quando construímos a Spcine, em São Paulo, na gestão de Fernando Haddad, nos intensos anos 2013-14. Uma instituição que virou hoje política de estado.
Se é fácil destruir instituições (veja-se o irracional ataque de Milei ao brilhante cinema argentino), é certamente complexo construí-las. Logo não é surpreendente ver no cinema brasileiro a dedicação de realizadores à construção de políticas cinematográficas. Adhemar Gonzaga, Carmem Santos e Alberto Cavalcanti. Cacá Diegues e Mariza Leão. Roberto Farias e Gustavo Dahl. Laís Bodansky, Orlando Senna e Manoel Rangel. Os grandes Lucy e Luiz Barreto, recém homenageados no Festival de Cannes. E muitos outros.

Essa tradição se justifica pelas dificuldades de um país que, de tempos em tempos, precisa convencer o andar de cima da importância estratégica do cinema.

Pouco antes de nos deixar, Toni lutava para que o Brasil adotasse uma regulação de streaming a altura do país e de suas aspirações de soberania. Como a maioria do setor, ele manifestava preocupação com o avanço do projeto de lei do Senador Eduardo Gomes (PL-TO), aprovado em abril deste ano no Senado, porque flexibiliza o conceito de empresa brasileira, permitindo que plataformas estrangeiras captem recursos públicos para seus conteúdos originais. E porque esvazia o Fundo Setorial do Audiovisual, com um alíquota irrisória a ser paga pelas big techs.
Toni articulava de perto o projeto alternativo relatado pelo Deputado André Figueiredo (PDT-CE), que garante os direitos patrimoniais da produção independente nacional e estabelece que plataformas paguem um valor de Condecine (contribuição ao desenvolvimento da indústria brasileira), semelhante ao imposto que se pratica na Europa. Não há portanto nada de errado em incentivar plataformas em que predomina a programação brasileira, mas bastou o projeto ser colocado em pauta e fake news não tardaram a surgir.

Com necessários ajustes, o projeto de lei de Figueiredo é uma oportunidade de um ciclo duradouro para o audiovisual. Para que seja votado, porém, vai ser necessário que o campo cultural faça valer sua voz, e que o governo Lula coloque efetivamente seu peso na articulação no legislativo, o que ainda não aconteceu.

Desta forma, a regulação do streaming poderá fazer justiça ao nome de Toni Venturi (homenagem da deputada Jandira Feghali). E jus a milhões de brasileiros que desejam se ver nas telas, e se orgulhar de uma indústria audiovisual que seja autora e senhora de seus conteúdos – e de seu destino.

Alfredo Manevy foi presidente da Spcine (2014-16) e secretário executivo do MinC (2008-10). Realizou Lupicínio Rodrigues, Confissões de um Sofredor.

Mais
Artigos